Estudo associa DNA mitocondrial a maior risco de autismo

Foi justamente para tentar preencher esta lacuna que os cientistas do hospital americano fizeram seu estudo

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Foto: Divulgação | Santa Casa de Misericórdia do Pará

Passado apenas da mãe para a prole, o DNA mitocondrial pode ter grande influência no risco de desenvolvimento de transtornos do espectro autista (TEA) pelos seus filhos, o que significa que algumas populações podem estar mais sujeitas ao problema do que outras. A indicação é de estudo de cientistas do Hospital Infantil da Filadélfia, pioneiros na análise da genética mitocondrial e suas mutações – que resultaram em diferentes “linhagens” conhecidas como haplótipos – para tentar reconstruir as rotas e a cronologia da expansão da Humanidade pela Terra e sua ligação com diversas doenças, publicado ontem no periódico científico “Jama Psychiatry”,.

“Usinas de energia” de nossas células, as mitocôndrias têm um código genético próprio que interage com o DNA do núcleo – este sim com contribuições divididas entre pais e mães – no seu funcionamento. E como o cérebro é, proporcionalmente, de longe o maior consumidor de energia de nosso organismo – apesar de responder por apenas cerca de 2% do peso corporal ele “queima” aproximadamente 20% das calorias -, qualquer problema nos processos das mitocôndrias pode ter grande impacto na saúde do órgão.

Mas embora pesquisas anteriores já tivessem detectado alterações metabólicas em indivíduos com autismo condizentes com defeitos mitocondriais, assim como mutações no DNA nuclear que afetam seu funcionamento em pacientes com o transtorno, pouco se sabia sobre a influência da genética das próprias mitocôndrias no seu desenvolvimento. E foi justamente para tentar preencher esta lacuna que os cientistas do hospital americano fizeram seu estudo.

Para isso, os pesquisadores sequenciaram no DNA mitocondrial de 1.624 pacientes diagnosticados com transtornos do espectro autista, bem como de 2.417 de seus pais e irmãos saudáveis de 933 famílias participantes do projeto Intercâmbio de Recursos Genéticos sobre o Autismo (AGRE, na sigla em inglês), no qual algumas das mutações no DNA nuclear relacionadas à doença foram identificadas nos estudos prévios. Assim, eles conseguiram organizar as famílias afetadas pelo distúrbio também pelo seu haplótipo mitocondrial, cruzando estas informações com o perfil populacional indicado pelas variações genéticas de seu DNA nuclear, pois ambos não coincidem necessariamente.

Por fim, usando diversas ferramentas estatísticas, eles calcularam como estas linhagens mitocondriais parecem influenciar na incidência dos transtornos, verificando que algumas delas – I, J, K, X, T e U, que respondem por cerca de 55% da população europeia, assim como as asiáticas e ameríndias A e M – apresentavam um risco significativamente maior de desenvolvimento de casos de autismo quando comparadas ao “superhaplótipo” de referência HHV, um agrupamento estatístico-computacional que criaram para o estudo ao qual pertencem aproximadamente 44% dos nascidos no continente.

“Nossos achados mostram que as diferenças no funcionamento das mitocôndrias são importantes nos TEA”, resume Douglas Wallace, diretor de Centro para Medicina Mitocondrial e Epigenômica do Hospital Infantil da Filadélfia e líder do estudo. – Nossa equipe demonstrou que a vulnerabilidade de uma pessoa para os transtornos do espectro autista varia de acordo com sua antiga linhagem mitocondrial.

Para especialistas consultados pelo GLOBO, as descobertas do estudo criam um novo paradigma para compreensão das causas do autismo, assim como abrem novas frentes para o diagnóstico e tratamento da condição. Segundo o neuropediatra Clay Brites, do Instituto Neurosaber e pesquisador do Laboratório de Estudos de Dificuldades de Aprendizagem da Unicamp, reforça a noção da influência de problemas metabólicos no desenvolvimento do autismo trazida por pesquisas anteriores, ajudando a explicar, por exemplo, porque algumas doenças mitocondriais apresentam sintomas similares ao do autismo, como comportamentos repetitivos e problemas neuromotores, porque o autismo muitas vezes se apresenta associado com outros distúrbios neurológicos, como epilepsia.

Mas, ainda mais importante, os achados podem ajudar a esclarecer porque em algumas famílias um irmão sofre com o autismo enquanto o outro não tem o transtorno, assim como porque determinadas populações em alguns lugares parecem ter observado um grande aumento na incidência do transtorno nos últimos anos. No primeiro caso, mesmo com ambas crianças tendo a mesma predisposição genética mitocondrial para o autismo, só uma também tem mutações no DNA nuclear que a levam a desenvolver o problema. Já no segundo, as alterações funcionais nas mitocôndrias podem a princípio não ser suficientes para que a criança desenvolva o transtorno, mas a exposição a fatores ambientais como poluentes ou toxinas acaba “empurrando” suas condições metabólicas já prejudicadas além de um limite em que ela se torna vítima do distúrbio.

“São muitas as variabilidades na incidência, gradação e tratamento dos TEA que este estudo pode ajudar a explicar, pois, apesar de periférico, o DNA mitocondrial é fundamental por sua relação com a produção de energia pelas células”, resume. – E ele mostra cada vez mais que não existe receita única nem milagre no tratamento do autismo, que deve ser individualizado, já que as variações genéticas tanto nucleares quanto mitocondriais e as condições ambientais faça com que cada criança tenha uma necessidade metabólica diferente que requer intervenções diferentes.

Biólogo, professor da Universidade da Califórnia em San Diego e sócio-fundador da empresa de biotecnologia Tismoo, dedicada ao desenvolvimento de análises genéticas para indicação de terapêuticas personalizadas para Transtornos do Espectro do Autismo e outros problemas neurológicos, o brasileiro Alysson Muotri destaca que o estudo também estimula investigar se drogas já existentes contra problemas metabólicos mitocondriais podem ajudar no tratamento da condição, bem como o desenvolvimento de novos fármacos com o objetivo de tentar sanar este possível aspecto do distúrbio.

– Ainda não sabemos muito bem como cada uma das variações na genética das mitocôndrias dos diferentes haplótipos afetam sua fisiologia, não temos todas as peças deste quebra-cabeças, mas as possibilidades abertas por este estudo são muitas – considera. – Precisamos repetir estas análises em populações específicas para entender se existe mesmo esta relação entre o funcionamento das mitocôndrias e o desenvolvimento dos transtornos, e até saber quando e onde esta tendência maior para o autismo surgiu.

Por fim, ambos especialistas também ressaltam que a nova pesquisa fortalece a visão de que os diagnósticos genéticos tanto nucleares quanto mitocondriais são essenciais para a melhor abordagem e tratamento dos pacientes.

“Já vislumbrávamos em um futuro próximo fazer um perfil gênico e ambiental da criança para decidir qual o melhor tratamento para ela, e agora este perfil gênico deve incluir, além do DNA nuclear, o mitocondrial”, avalia Brites. – Além disso, quando começamos a mapear mutações mais frequentes em uma doença, também começamos a buscar fármacos para neutralizar os efeitos destas mutações. Assim, esta pesquisa pode sugerir pontos específicos para o desenvolvimento de medicamentos com determinadas mutações mitocondriais na chamada farmacogenética.

Gazeta Online

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